Nada, você não entende nada. Dama da noite. todos me chamam e nem sabem que
durmo o dia inteiro. Não suporto: luz, também nunca tenho nada pra fazer - o
quê? Umas rendas aí. É, macetes. Não dou detalhe, adianta insistir. Mutreta,
trambique, muamba. Já falei: não adianta insistir, boy . Aprendi que, se eu der
detalhe, você vai sacar que tenho grana e se eu tenho grana você vai querer
foder comigo só porque eu tenho grana. E acontece que eu ainda sou babaca,
pateta e ridícula o suficiente para estar procurando O verdadeiro amor. Pára de
rir, senão te jogo já este copo na cara. Pago o copo, a bebida. Pago o estrago
e até o bar, se ficar a fim de quebrar tudo. Se eu tô tesuda e você anda duro e
eu precisar de cacete, compro o teu, pago o teu. Quanto custa? Me diz que eu
pago. Pago bebida, comida, dormida. E pago foda também, se for preciso.
Pego, claro que eu pego. Pego sim, pego depois. É grande? Gosto de grande, bem
grosso. Agora não. Agora quercì falar na roda. Essa roda, você não vê, garotão?
Está por aí. rodando aqui mesmo. Olha em volta, cara. Bem do teu lado. Naquela
mina ali, de preto, a de cabelo arrepiadinho. Tá bom, eu sei: pelo menos dois
terços do bar veste preto e tem cabelo arrepiadinho, inclusive nós. Sabe que,
se há uns dei anos eu pensasse em mim agora aqui sentada com você, eu não ia
acreditar? Preto absorve vibração negativa, eu pensava. O contrário de branco,
branco reflete. Mas acho que essa moçada tá mais a fim mesmo é de absorver,
chupar até o fundo do mal - hein? Depois, até posso. Tem problema, não. Mas não
é disso que estou falando agora, meu bem.
Você não gosta? Ah, não me diga, garotinho. Mas se eu pago a bebida, eu digo o
que eu quiser, entendeu? Eu digo meu-bem assim desse jeito, do jeito que eu bem
entender. Digo e repito: meu-bem-meu-bem-meu-bem. Pego no seu queixo a hora que
eu quiser também, enquanto digo e repito e redigo meu-bem-meu-bem. Queixo
furadinho, hein? Já observei que homem de queixo furadinho gosta mesmo é de dar
o rabo. Você já deu o seu? Pelo amor de Deus, não me venha com aquela história
tipo sabe, uma noite, na casa de um pessoal em Boiçucanga, tive que dormir na
mesma cama com um carinha que.
Todo machinho da sua idade tem loucura por dar o rabo, meu bem. Ascendente
Câncer, eu sei: cara de lua, bunda gordinha e cu aceso. Não é vergonha nenhuma:
tá nos astros, boy. Ou então é veado mesmo, e tudo bem.
Levanta não, te pago outra vodca, quer? Só pra deixar eu falar mais na roda.
Você é muito garoto, não entende dessas coisas. Deixa a vida te lavrar a cara,
antes, então a gente. Bicho, esquisito: eu ia dizer alma, sabia? Quer que eu
diga? Tá bom, se você faz tanta questão, posso dizer. Será que ainda consigo,
como é que era mesmo? Assim: deixa a vida te lavrar a alma, antes, então a
gente conversa. Deixa você passar dos trinta, trinta e cinco, ir chegando nos
quarenta e não casar e nem ter esses monstros que eles chamam de filhos, casa
própria nem porra nenhuma. Acordar no meio da tarde, de ressaca, olhar sua cara
arrebentada no espelho. Sozinho em casa, sozinho na cidade, sozinho no mundo.
Vai doer tanto, menino. Ai como eu queria tanto agora ter uma alma portuguesa
para te aconchegar ao meu seio e te poupar essas futuras dores dilaceradas.
Como queria tanto saber poder te avisar: vai pelo caminho da esquerda, boy, que
pelo da direita tem lobo mau e solidão medonha.
A roda? Não sei se é você que escolhe, não. Olha bem pra mim - tenho cara de
quem escolheu alguma coisa na vida? Quando dei por mim, todo mundo já tinha
decorado a tal palavrinha-chave e tava a mil, seu lugarzinho seguro, rodando na
roda. Menos eu, menos eu. Quem roda na roda fica contente. Quem não roda se
fode. Que nem eu, você acha que eu pareço muito fodida? Um pouco eu sei que
sim, mas fala a verdade: muito? Falso, eu tenho uns amigos, sim. Fodidos que
nem eu. Prefiro não andar com eles, me fazem mal. Gente da minha idade, mesmo
tipo de. Ia dizer problema, puro hábito: não tem problema. Você sabe, um saco.
Que nem espelho: eu olho pra cara fodida deles e tá lá escrita escarrada a
minha própria cara fodida também, igualzinha à cara deles. Alguns rodam na
roda, mas rodam fodidamente. Não rodam que nem você. Você é tão inocente, tão
idiotinha com essa camisinha Mr. Wonderful. Inocente porque nem sabe que é
inocente. Nem eles, meus amigos fodidos, sabem que não são mais. Tem umas coisas
que a gente vai deixando, vai deixando, vai deixando de ser e nem percebe.
Quando viu, babau, já não é mais. Mocidade é isso aí, sabia? Sabe nada: você
roda na roda também, quer uma prova? Todo esse pessoal da preto e cabelo
arrepiadinho sorri pra você porque você é igual a eles. Se pintar uma festa, te
dão um toque, mesmo sem te conhecer. Isso é rodar na roda, meu bem.
Pra mim, não. Nenhum sorriso. Cumplicidade zero. Eu não sou igual a eles, eles
sabem disso. Dama da noite, eles falam, eu sei. Quando não falam coisa mais
escrota, porque dama da noite é até bonito, eu acho. Aquela flor de cheiro
enjoativo que só cheira de noite, sabe qual? Sabe porra: você nasceu dentro de
um apartamento, vendo tevê.
Não sabe nada. fora essas coisas de vídeo, performance, high-tech, punk, dark.
computador, heavy-metal e o caralho. Sabia que eu até vezenquando tenho mais
pena de você e desses arrepiadinhos de preto do que de mim e daqueles meus
amigos fodidos? A gente teve uma hora que parecia que ia dar certo. Ia dar, ia
dar. sabe quando vai dar? Pra vocês, nem isso. A gente teve a ilusão, mas vocês
chegaram depois que mataram a ilusão da gente.
Tava tudo morto quando você nasceu, boy, e eu já era puta velha. Então eu tenho
pena. Acho que sou melhor, sei porque peguei a coisa viva. Tá bom, desculpa,
gatinho. Melhor, melhor não. Eu tive mais sorte, foi isso? Eu cheguei antes. E
até me pergunto se não é sorte também estar do lado de fora dessa roda besta
que roda sem fim, sem mim. No fundo, tenho nojo dela - você?
Você não viu nada, você nem viu o amor. Que idade você tem, vinte? Tem cara de
doze. Já nasceu de camisinha em punho, morrendo de medo de pegar Aids. Vírus
que mata. neguinho, vírus do amor. Deu a bundinha, comeu cuzinho. pronto:
paranóia total. Semana seguinte, nasce uma espinha na cara e salve-se quem
puder: baixou Emílio Ribas. Caganeira, tosse seca, gânglios generalizados.
Õ boy, que grande merda fizeram com a tua cabecinha, hein? Você nem beija na
boca sem morrer de cagaço. Transmite pela saliva, você leu em algum lugar. Você
nem passa a mão em peito molhado sem ficar de cu na mão. Transmite pelo suor,
você leu em algum lugar. Supondo que você lê, claro. Conta pra tia: você lê,
meu bem? Nada, você não lê nada. Você vê pela tevê, eu sei. Mas na tevê também
dá, o tempo todo: amor mata amor mata amor mata. Pega até de ficar do lado,
beber do mesmo copo. Já pensou se eu tivesse? Eu, que já dei pra meia cidade e
ainda por cima adoro veado.
Eu sou a dama da noite que vai te contaminar com seu perfume venenoso e mortal.
Eu sou a flor carnívora e noturna que vai te entontecer e te arrastar para o
fundo de seu jardim pestilento. Eu sou a dama maldita que, sem nenhuma piedade,
vai te poluir com todos os líquidos, contaminar teu sangue com todos os vírus.
Cuidado comigo: eu sou a dama que mata, boy. Já chupou buceta de mulher? Claro
que não, eu sei: pode matar. Nem caralho de homem: pode matar. Já sentiu aquele
cheiro molhado que as pessoas têm nas virilhas quando tiram a roupa? Está
escrito na sua cara, tudo que você não viu nem fez está escrito nessa sua cara
que já nasceu de máscara pregada. Você já nasceu proibido de tocar no corpo do
outro. Punheta pode, eu sei, mas essa sede de outro corpo é que nos deixa
loucos e vai matando a gente aos pouquinhos. Você não conhece esse gosto que é
o gosto que faz com que a gente fique fora da roda que roda e roda e que se
foda rodando sem parar, porque o rodar dela é o rodar de quem consegue fingir
que não viu o que viu. O boy, esse mundo sujo todo pesando em cima de você,
muito mais do que de mim e eu ainda nem comecei a falar na morte...
Já viu gente morta, boy? É feio, boy. A morte é muito feia, muito suja, muito
triste. Queria eu tanto ser assim delicada e poderosa, para te conceder a vida
eterna. Queria ser uma dama nobre e rica para te encerrar na torre do meu
castelo e poupar você desse encontro inevitável com a morte. Cara a cara com
ela, você já esteve? Eu, sim, tantas vezes. Eu sou curtida, meu bem. A gente lê
na sua cara que nunca. Esse furinho de veado no queixo, esse olhinho verde me
olhando assim que nem eu fosse a Isabella Rossellini levando porrada e gostando
e pedindo eat me eat me, escrota e deslumbrante. Essa tontura que você está
sentindo não é porre, não. É vertigem do pecado, meu bem, tontura do veneno. O
que que você vai contar amanhã na escola, hein? Sim, porque vocé ainda deve ir
à escola, de lancheira e tudo. Já sei: conheci uma mina meio coroa, porra-louca
demais. Cretino, cretino, pobre anjo cretino do fim de todas as coisas. Esse
caralhinho gostoso aí, escondido no meio das asas, é só isso que você tem por
enquanto. Um caralhinho gostoso, sem marca nenhuma. Todo rosadinho. E burro.
Porque nem brochar você deve ter brochado ainda. Acorda de pau duro, uma tábua,
tem tesão por tudo, até por fechadura. Quantas por dia? Muito bem, parabéns:
você tá na idade. Mas anota aí pro teu futuro cair na real: essa sede, ninguém
mata. Sexo é na cabeça: você não consegue nunca. Sexo é só na imaginação. Você
goza com aquilo que imagina que te dá o gozo, não com uma pessoa real, entendeu?
Você goza sempre com o que tá na sua cabeça, não com quem tá na cama. Sexo é
mentira, sexo é loucura, sexo é sozinho, boy.
Eu, cansei. Já não estou mais na idade. Quantos? Ah, você não vai acreditar,
esquece. O que importa é que você entra por um ouvido meu e sai pelo outro,
sabia? Você não fica. você não marca. Eu sei que fico em você, eu sei que marco
você. Marco fundo. Eu sei que, daqui a um tempo, quando você estiver rodando na
roda, vai lembrar que, uma noite. sentou ao lado de uma mina louca que te disse
coisas, que te falou no sexo, na solidão, na morte. Feia, tão feia a morte,
boy. A pessoa fica meio verde, sabe? Da cor quase assim desse molho de
espinafre frio. Mais clarinho um pouco, mas isso nem é o pior. Tem uma coisa
que já não está mais ali, isso é o mais triste. Você olha, olha e olha e o
corpo fica assim que nem uma cadeira.
Uma mesa, um cinzeiro, um prato vazio. Uma coisa sem nada dentro. Que nem casca
de amendoim jogada na areia, é assim que a gente fica quando morre, viu, boy? E
você, já descobriu que um dia também vai morrer?
Dou, claro. Ficou nervosinho, quer cigarro? Mas nem fumar você fuma, o quê?
Compreendo, compreendo sim, eu compreendo sempre, sou uma mulher muito
compreensiva. Sou tão maravilhosamente compreensiva e tudo que, se levar você
pra minha cama agora e amanhã de manhã você tiver me roubado toda a grana, não
pense que vou achar você um filho da puta. Não é o máximo da compreensão? Eu
vou achar que você tá na sua, um garotinho roubando uma mulher meio pirada,
meio coroa, que mexeu com sua cabecinha de anjo cretino desse nojento fim de
todas as coisas. Tá tudo bem, é assim que as coisas são: ca-pi-ta-lis-tas, em
letras góticas de neon. Mulher pirada e meio coroa que nem eu tem mais é que
ser roubada por um garotinho ïmbecil e tesudinho como você. Só pra deixar de
ser burra caindo outra vez nessa armadilha de sexo.
Fissura, estou ficando tonta. Essa roda girando girando sem parar. Olha bem:
quem roda nela? As mocinhas que querem casar, os mocinhos a fim de grana pra
comprar um carro, os executivozinhos a fim de poder e dólares, os casais de
saco cheio um do outro, mas segurando umas. Estar fora da roda é não segurar
nenhuma, não querer nada. Feito eu: não seguro picas, não quero ninguém. Nem
você. Quero não, boy. Se eu quiser, posso ter. Afinal, trata-se apenas de um
cheque a menos no talão, mais barato que um par de sapatos. Mas eu quero mais é
aquilo que não posso comprar. Nem é você que eu espero, já te falei. Aquele um
vai entrar um dia talvez por essa mesma porta, sem avisar. Diferente dessa
gente toda vestida de preto, com cabelo arrepiadinho. Se quiser eu piro, e
imagino ele de capa de gabardine, chapéu molhado, barba de dois dias, cigarro
no canto da boca, bem noir. Mas isso é filme, ele não. Ele é de um jeito que
ainda não sei, porque nem vi. Vai olhar direto para mim. Ele vai sentar na
minha mesa, me olhar no olho, pegar na minha mão, encostar seu joelho quente na
minha coxa fria e dizer: vem comigo. É por ele que eu venho aqui, boy, quase
toda noite. Não por você, por outros ecmo você. Pra ele, me guardo. Ria de mim,
mas estou aqui parada, bêbada, pateta e ridícula, só porque no meio desse lixo
todo procuro o verdadeiro amor. Cuidado, comigo: um dia encontro.
Só por ele, por esse que ainda não veio, te deixo essa grana agora, precisa
troco não, pego a minha bolsa e dou a fora já. Está quase amanhecendo, boy. As
damas da noite recolhem seu perfume com a luz do dia. Na sombra, sozinhas.
envenenam a si próprias com loucas fantasias. Divida essa sua juventude
estúpida com a gatinha ali do lado, meu bem. Eu vou embora sozinha. Eu tenho um
sonho, eu tenho um destino, e se bater o carro e arrebentar a cara toda saindo
daqui. continua tudo certo. Fora da roda, montada na minha loucura. Parada
pateta ridícula porra-louca solitária venenosa. Pós-tudo, sabe como?
Darkérrima, modernésima, puro simulacro.
Dá minha jaqueta, boy, que faz um puta frio lá fora e quando chega essa hora da
noite eu me desencanto. Viro outra vez aquilo que sou todo dia, fechada sozinha
perdida no meu quarto, longe da roda e de tudo: uma criança assustada.