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sexta-feira, 31 de agosto de 2012

A Velha - Cleberson Dias


A Velha
(por Cleberson Dias)




Velha e cansada, não suportava mais a curta variação entre os cadernos de tricô, cujos pontos já lhes eram todos familiares, e os escritos de Simone de Beauvoir. Caquética e em cacos, há muito fora abandonada pela beleza e pelo tempo. Não tinha mais vontade de se olhar no espelho. Não comprava aqueles produtos que normalmente as mulheres usam para mascarar a idade ou para parecerem mais bonitas do que de fato são. Não tinha vaidades. Não sabia se de fato seu ventre era seco ou se a falta de marido a impedira de ter filhos. Disfarçava a sua amargura e acidez dando balas às crianças de sua rua, mas odiava ser chamada de “vó”. Será que aquelas malditas crianças não percebiam que ela não tinha filhos, muito menos netos? Quanto à oração do Santo Rosário, há muito não rezava “Ave Maria”, porque era insuportável aos seus ouvidos a expressão “bendito é o fruto do vosso ventre”. Não experimentou as dores do parto. Não sentiria o medo pelo qual todas as mães passam de perder um filho para sempre. Ela tinha, mesmo assim, uma certeza: a infância é o reino onde ninguém morre. Outrossim, conservava alguma fé.

Era a mais nova de sete filhos: quatro homens e três mulheres. Fora educada desde pequena para que compreendesse que sua obrigação seria cuidar de seus pais, quando envelhecessem. Sua sina seria a devoção. Assim, desde pequena, fora forçada a optar por outros e não por si mesma. E, agora, na velhice, o gosto por Simone de Beauvoir era, na verdade, uma tentativa de compreender a miséria e humilhação imposta pela condição de velha, cruz de mármore. Simone de Beauvoir disse que, quando se respeita alguém, não queremos forçar a sua alma sem o seu consentimento.

Vagava pela casa na qual se dedicara por longos anos a cuidar de seus pais. Em cada cômodo, uma recordação, uma história. Na varanda simples, no fundo da casa, voltada para o quintal e o mato alto, lembrou do seus sonhos que se dirigiram, no passado, para a Universidade: seria doutora. Não sabia bem em que. Mas sonhava com pessoas a chamando por um título. Um título que indicasse alguma importância. Não queria para si o título de “vó”. Mas, agora, só esse lhe restara. Tornara-se apenas uma normalista. A faculdade era demasiadamente cara e distante dos olhos vigilantes da mãe, verdadeiro cinto de castidade. Agora já não havia mais tempo nem desejo de ser feliz. Não acreditava mais na felicidade. Desejara até então e ardentemente ser a garota que comunga na missa da manhã, com certezas serenas. Mas compreendera, assim como Simone, que o ato de fé é a ação mais desesperada que existe. Queria, na verdade, em seu desespero, conservar alguma lucidez, sem mentir para si mesma.

Na sala, todas as coisas em seus devidos lugares, como sempre ordenara sua mãe. Sem sinal de poeira. Uma vida impregnada de regularidade e de constante inverno, de linguagem oral e escrita rebuscada, labiríntica, barroca: apenas isso percebiam os que nela fitavam os olhos. Mas eles não a conheciam profundamente. Eram leitores de leituras levianas então. Eram homens e mulheres de pífio vocabulário e demasiadamente humano, numa tentativa de fuga de si mesmos e do mundo que os abarca. Sentiam certo prazer na ignorância e na apreciação da vida e coisas alheias.

No quarto de seus pais, agora vazio de gente, o velho baú, também vazio, poderia muito bem ser usado para guardar livros e cadernos de quando ela ainda lecionava, se não tivesse ateado tudo ao fogo. Ela era agora um baú: fechada em si, encerrava no âmago os desejos carnais mais voluptuosos, aqueles aos quais todos os homens se dão ao luxo quando não são observados. A castidade que prometera à mãe, diante da imagem de Santa Inês, na capela simples que frequentara desde pequena, não durou mais que três turmas alfabetizadas por sua cartilha. Isso a colocava em luto constante e, não raramente, custavam a ela muitas lágrimas e noites de sono. Mas há lágrimas que não fazem mal e lutos que precisam ser vividos com intensidade e em sua totalidade, pois são resultado de experiências que muitas vezes nos marcam e deixam feridas que nem o tempo consegue suturar, porque são profundas demais. Aquela senhora que dava gentilmente balas às crianças não chorava por uma promessa feita à mãe e que não fora integralmente cumprida: chorava de saudade daquele amor ao qual ofertou a sua virtude. Chorava porque nunca teria as bênçãos de sua mãe para se unir ao experiente diretor que a recebeu em sua escola e a ela deu todo o suporte que uma professora recém-formada espera receber. Agora, idos os setenta e outros anos de idade, tocava seu corpo enrugado, deslizava o dedo por sobre sua vergonha e se martirizava pelo tempo perdido e pelo amor não vivido. Essa velha idiota dizia a si mesma que o futuro haveria de contar uma história diferente a seu respeito. Mas agora era tarde. Com aquela sufragista, esposa de Sartre, aprendera que renunciar ao amor parecia ser algo tão insensato como desinteressar-se da saúde, porque todos acreditam na eternidade. Não havia sido um grande amor. Apenas um amor. Talvez amasse apenas as memórias que, com ele, vivera naquela escola. Amar era mais difícil do que ela pensara, pois compreende muitas inquietações e renúncias, pequenas tristezas que surgem aqui e acolá.

Em seu quarto, olhava para a sua cama de solteira. Arrependia-se por não ter se dado a todos em prazeres carnais, em volúpia. Martirizava-se agora porque não se batizara na boemia e por não ter corrido riscos. Devia ter saído com homens casados e destruído matrimônios, quando a sua beleza ainda era um préstimo do tempo. Tinha sede de carne nova, quase intocada, o banquete recém-posto. Pagaria agora por bebida, comida e sexo. Mas era agora seca no meio das suas pernas, caatinga em tempos de estiagem, e não haveria dinheiro que fizesse um homem, por melhor ator que fosse, desejá-la. Mas porque, então, ela se sentia tão suja e insana quando pensava nessas coisas? Sentia horror à alma, sentia-se pecadora. Merecedora de experimentar o enxofre do inferno. Já não se enganava mais com as tentativas de ludibriar o tempo. Agora era o tempo de recordar e tentar acreditar nas palavras de Paulo, Apóstolo, a Tito (2: 2-4): “As mulheres idosas, semelhantemente, que sejam sérias no seu viver, como convém a santas, não caluniadoras, não dadas a muito vinho, mestras no bem; para que ensinem as mulheres novas a serem prudentes, a amarem seus maridos, a amarem seus filhos, a serem moderadas, castas, boas donas de casa, sujeitas a seus maridos, a fim de que a palavra de Deus não seja blasfemada.”

Não queria definições para si. Nunca se sujeitara a definições. Com Simone de Beauvoir entendera que a liberdade é a substância humana. Foi à cozinha. Sentou-se à margem da própria vida. Sabia muito bem que aquele que se senta à margem da própria vida é incapaz de recriá-la. Bateu um bolo e assumiu toda a culpa. Regou-o com lágrimas e vida sem vida e dor e sofrimento, abnegação e arrependimento. Sua vida não era de fato mais satisfatória que a ficção. Achava a vida longa demais. Seguidora de Simone de Beauvoir, entendera que negar a vida é também uma forma de existir e, se escolheu apenas existir, escolheu não ser Deus. Se viver é apenas envelhecer e nada além disso, desejava uma morte sem propósito. Tinha nas mãos não um livro de receitas, mas um pedaço de papel de pão, no qual copiara, para não se esquecer, uma citação de Simone de Beauvoir que lhe agradara outrora: “Tudo o que podemos dizer sobre nossas vidas, segundo me parece, não passa de palavras. Mas, às vezes, a palavra representa um modo mais acertado de se calar do que o silêncio.”

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