A Velha
(por Cleberson Dias)
Velha e cansada, não suportava
mais a curta variação entre os cadernos de tricô, cujos pontos já lhes eram
todos familiares, e os escritos de Simone de Beauvoir. Caquética e em cacos, há
muito fora abandonada pela beleza e pelo tempo. Não tinha mais vontade de se
olhar no espelho. Não comprava aqueles produtos que normalmente as mulheres
usam para mascarar a idade ou para parecerem mais bonitas do que de fato são.
Não tinha vaidades. Não sabia se de fato seu ventre era seco ou se a falta de
marido a impedira de ter filhos. Disfarçava a sua amargura e acidez dando balas
às crianças de sua rua, mas odiava ser chamada de “vó”. Será que aquelas
malditas crianças não percebiam que ela não tinha filhos, muito menos netos?
Quanto à oração do Santo Rosário, há muito não rezava “Ave Maria”, porque era insuportável
aos seus ouvidos a expressão “bendito é o fruto do vosso ventre”. Não
experimentou as dores do parto. Não sentiria o medo pelo qual todas as mães
passam de perder um filho para sempre. Ela tinha, mesmo assim, uma certeza: a
infância é o reino onde ninguém morre. Outrossim, conservava alguma fé.
Era a mais nova de sete filhos:
quatro homens e três mulheres. Fora educada desde pequena para que
compreendesse que sua obrigação seria cuidar de seus pais, quando envelhecessem.
Sua sina seria a devoção. Assim, desde pequena, fora forçada a optar por outros
e não por si mesma. E, agora, na velhice, o gosto por Simone de Beauvoir era,
na verdade, uma tentativa de compreender a miséria e humilhação imposta pela
condição de velha, cruz de mármore. Simone de Beauvoir disse que, quando se
respeita alguém, não queremos forçar a sua alma sem o seu consentimento.
Vagava pela casa na qual se
dedicara por longos anos a cuidar de seus pais. Em cada cômodo, uma recordação,
uma história. Na varanda simples, no fundo da casa, voltada para o quintal e o
mato alto, lembrou do seus sonhos que se dirigiram, no passado, para a
Universidade: seria doutora. Não sabia bem em que. Mas sonhava com pessoas a
chamando por um título. Um título que indicasse alguma importância. Não queria
para si o título de “vó”. Mas, agora, só esse lhe restara. Tornara-se apenas
uma normalista. A faculdade era demasiadamente cara e distante dos olhos
vigilantes da mãe, verdadeiro cinto de castidade. Agora já não havia mais tempo
nem desejo de ser feliz. Não acreditava mais na felicidade. Desejara até então
e ardentemente ser a garota que comunga na missa da manhã, com certezas
serenas. Mas compreendera, assim como Simone, que o ato de fé é a ação mais
desesperada que existe. Queria, na verdade, em seu desespero, conservar alguma
lucidez, sem mentir para si mesma.
Na sala, todas as coisas em seus
devidos lugares, como sempre ordenara sua mãe. Sem sinal de poeira. Uma vida
impregnada de regularidade e de constante inverno, de linguagem oral e escrita
rebuscada, labiríntica, barroca: apenas isso percebiam os que nela fitavam os
olhos. Mas eles não a conheciam profundamente. Eram leitores de leituras
levianas então. Eram homens e mulheres de pífio vocabulário e demasiadamente
humano, numa tentativa de fuga de si mesmos e do mundo que os abarca. Sentiam
certo prazer na ignorância e na apreciação da vida e coisas alheias.
No quarto de seus pais, agora
vazio de gente, o velho baú, também vazio, poderia muito bem ser usado para
guardar livros e cadernos de quando ela ainda lecionava, se não tivesse ateado
tudo ao fogo. Ela era agora um baú: fechada em si, encerrava no âmago os
desejos carnais mais voluptuosos, aqueles aos quais todos os homens se dão ao
luxo quando não são observados. A castidade que prometera à mãe, diante da
imagem de Santa Inês, na capela simples que frequentara desde pequena, não
durou mais que três turmas alfabetizadas por sua cartilha. Isso a colocava em
luto constante e, não raramente, custavam a ela muitas lágrimas e noites de
sono. Mas há lágrimas que não fazem mal e lutos que precisam ser vividos com
intensidade e em sua totalidade, pois são resultado de experiências que muitas
vezes nos marcam e deixam feridas que nem o tempo consegue suturar, porque são
profundas demais. Aquela senhora que dava gentilmente balas às crianças não
chorava por uma promessa feita à mãe e que não fora integralmente cumprida:
chorava de saudade daquele amor ao qual ofertou a sua virtude. Chorava porque
nunca teria as bênçãos de sua mãe para se unir ao experiente diretor que a
recebeu em sua escola e a ela deu todo o suporte que uma professora recém-formada
espera receber. Agora, idos os setenta e outros anos de idade, tocava seu corpo
enrugado, deslizava o dedo por sobre sua vergonha e se martirizava pelo tempo
perdido e pelo amor não vivido. Essa velha idiota dizia a si mesma que o futuro
haveria de contar uma história diferente a seu respeito. Mas agora era tarde.
Com aquela sufragista, esposa de Sartre, aprendera que renunciar ao amor
parecia ser algo tão insensato como desinteressar-se da saúde, porque todos
acreditam na eternidade. Não havia sido um grande amor. Apenas um amor. Talvez
amasse apenas as memórias que, com ele, vivera naquela escola. Amar era mais
difícil do que ela pensara, pois compreende muitas inquietações e renúncias,
pequenas tristezas que surgem aqui e acolá.
Em seu quarto, olhava para a sua
cama de solteira. Arrependia-se por não ter se dado a todos em prazeres
carnais, em volúpia. Martirizava-se agora porque não se batizara na boemia e
por não ter corrido riscos. Devia ter saído com homens casados e destruído
matrimônios, quando a sua beleza ainda era um préstimo do tempo. Tinha sede de
carne nova, quase intocada, o banquete recém-posto. Pagaria agora por bebida,
comida e sexo. Mas era agora seca no meio das suas pernas, caatinga em tempos
de estiagem, e não haveria dinheiro que fizesse um homem, por melhor ator que
fosse, desejá-la. Mas porque, então, ela se sentia tão suja e insana quando
pensava nessas coisas? Sentia horror à alma, sentia-se pecadora. Merecedora de
experimentar o enxofre do inferno. Já não se enganava mais com as tentativas de
ludibriar o tempo. Agora era o tempo de recordar e tentar acreditar nas palavras
de Paulo, Apóstolo, a Tito (2: 2-4): “As mulheres idosas, semelhantemente, que
sejam sérias no seu viver, como convém a santas, não caluniadoras, não dadas a
muito vinho, mestras no bem; para que ensinem as mulheres novas a serem
prudentes, a amarem seus maridos, a amarem seus filhos, a serem moderadas, castas,
boas donas de casa, sujeitas a seus maridos, a fim de que a palavra de Deus não
seja blasfemada.”
Não queria definições para si.
Nunca se sujeitara a definições. Com Simone de Beauvoir entendera que a
liberdade é a substância humana. Foi à cozinha. Sentou-se à margem da própria
vida. Sabia muito bem que aquele que se senta à margem da própria vida é
incapaz de recriá-la. Bateu um bolo e assumiu toda a culpa. Regou-o com
lágrimas e vida sem vida e dor e sofrimento, abnegação e arrependimento. Sua
vida não era de fato mais satisfatória que a ficção. Achava a vida longa demais.
Seguidora de Simone de Beauvoir, entendera que negar a vida é também uma forma
de existir e, se escolheu apenas existir, escolheu não ser Deus. Se viver é
apenas envelhecer e nada além disso, desejava uma morte sem propósito. Tinha
nas mãos não um livro de receitas, mas um pedaço de papel de pão, no qual
copiara, para não se esquecer, uma citação de Simone de Beauvoir que lhe
agradara outrora: “Tudo o que podemos dizer sobre nossas vidas, segundo me
parece, não passa de palavras. Mas, às vezes, a palavra representa um modo mais
acertado de se calar do que o silêncio.”
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