por Cleberson Dias
Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, professores que professavam, outros tantos homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam. Todos com juízo, suficientemente, menos um meninozinho, aquele com um livro na mão. Aquele, um dia, saiu de lá, com o livro na mão, entrou em seu automóvel vermelho alienado: as pesadas parcelas o obrigavam a uma jornada de três períodos, em quatro escolas, três aldeias diferentes. O amor à vocação fora submetido a um fetiche mercadológico. O dia seria fatigante.
Sua vocação mandara-o, o meninozinho, com um livro na mão, aos alunos que amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia. O-menino-com-um-livro-na-mão partiu, sobre logo, ele, solitário e macambúzio, tudo era uma vez... O livro continha infindáveis teorias filosóficas que ele mesmo apenas fazia ensinar. Contudo, há alguns dias, certo pensador aliciou a sua atenção, assoalhando-lhe que a existência é extremamente vazia e que toda produção cultural e tudo mais que os homens produzem tão somente tem por objetivo a negação da falta de sentido da vida. Esse menino, então, já com “Síndrome de Peter Pan”, sentiu-se deveras angustiado, agora mais do que nunca. E ele mesmo resolveu tornar aquele caminho, de uma aldeia à outra, louco e longo, não encurtoso. Saiu, não em alta velocidade, e sua sombra o acompanhava sobejamente. Divertia-se com as plebeinhas flores, aquelas que nunca estão em buquês. Deliciava-se com as borboletas, princesinhas incomuns, obsoletas aos outros motoristas. Assim, demorou para dar com a Escola.
Daí que, vencido mais uma vez aquele íntimo caminho, naquele dia um tanto diferente, chegando à Escola, viu só os professores, mas, aluno, nenhum. Haviam faltado naquele dia. No entanto, de súbito, dissipou-se a alegria do caminho e a angústia lhe tomou novamente a fronte. Agora, grávido de angústia, ele mesmo era quem se dizia: “ – A felicidade não passa de um sonho, e a dor é real... Há vinte e nove anos que o sinto. Quanto a isso, não posso fazer outra coisa senão me resignar, e dizer que as moscas nasceram para serem comidas pelas aranhas e os homens para serem devorados pelo pesar. Parecemo-nos com carneiros a brincar na relva, enquanto o açougueiro, com os olhos, está a escolher alguns entre eles, pois, nestes bons tempos, não sabemos que infelicidade precisamente agora o destino está nos preparando: doença, perseguição, empobrecimento, mutilação, cegueira, loucura, morte... Vista pelos jovens, a vida é um futuro infinitamente longo; vista pelos velhos, um passado muito breve... Andei este bom tanto, com o livro na mão, o tanto que as dívidas me obrigaram, oscilando entre aquela criança que não quer crescer e um ancião que carrega o peso dos anos, andando de cá para lá, com seus passos vacilantes, repousando num canto e outro. Uma sombra. Um fantasma do que era antes... Que me resta ainda para ser destruído pela morte?” Seria aquele o dia de seu aniversário se, ironicamente, não houvesse tomado a decisão de não mais cumprir anos. Bastavam-lhe aqueles outros vinte e nove.
Na sala dos professores, saudou a todos, enquanto ainda era tempo. Seus companheiros de jornada pediram-lhe que depusesse sobre a mesa a mochila que trazia como fardo em suas costas. Como sempre, trazia também o livro na mão. Mas isto não mais importava, posto que algumas daquelas teorias já haviam feito ninho em seu coração. O menino, destruído pelo tempo que insistia em querer roubar o poder e a beleza da sua juventude, assim o fez, e sentou e olhou para todos, com imensa fome de afirmação de si mesmo. As pessoas sussurravam entre si sobre como o seu rosto há muito não sorria e como os seus olhos ultimamente haviam perdido parte de seu brilho questionador. Mas estavam enganadas: na verdade, eram incapazes de compreender que a existência da maior parte dos homens é, vista exteriormente, por olhos que não os próprios olhos, insignificante e destituída de sentido, e como é surda e obscura, quando analisada por razão alheia, quando sentida interiormente por outrem. Consta apenas de tormentos, aspirações impossíveis; é o andar cambaleante de um homem que sonha através das quatro épocas da vida, até à morte, com um cortejo de pensamentos triviais.
Como seus companheiros não sabiam da sua decisão de não mais cumprir anos, decisão esta tomada em seu último aniversário, se aproximavam, quebrantados pelo silêncio do menino, com vozes apagadas e fracas e roucas, assim, de ter apanhado um ruim defluxo. Deram-lhe os parabéns que, aos seus ouvidos, soavam como pêsames. O menino-professor, pasmo, notava em seus rostos uma ironia, lupina por natureza, que celebrava o fato de que todos envelhecem em morrem, inclusive ele. Naquele momento, ele mesmo não queria ter dezesseis anos. Ele não queria ter doze anos. Ele não queria ter seis anos. Na verdade, ele não queria ter nascido!!!
Sua razão se obscureceu quando considerou que as inúmeras estrelas fixas, que brilham no céu, não têm outro fim senão o de iluminar mundos onde reinam o pranto, a dor, e onde, no melhor dos casos, só vinga o aborrecimento, pelo menos a julgar pela amostra que conhecemos. Ele estava naquela sala, demasiado presente, quando imaginou seu corpo sendo devorado drasticamente por lobos... O exame do seu cadáver mostraria que a sensibilidade, a irritabilidade, a circulação do sangue, a reprodução cessaram. Se tocassem em seu cadáver agora, perguntando se desejava ressuscitar, ele sacudiria a cabeça em um movimento de recusa.
Assustado sobre como tão longe tinha o seu pensamento voado, ele gritou: “ – Tenho medo do lobo!!!” Os muitos que apostavam em sua insanidade, a concluíram. Ele piamente acreditava, no entanto, que a normalidade é coisa destarte imbecil e estéril, nada produzindo de interessante ou bom. Não obstante, era preciso ser gentil e agradecer as congratulações sobre aquilo que não deveria ser comemorado, mesmo sem poder dizê-lo. Não queria dizer que a sua filosofia era desesperada somente porque se expressava conforme a verdade. Todos aqueles que estavam naquela sala acreditavam, entre tantos credos que professavam, que o Senhor Deus fez tudo do melhor modo. Mas, a sua vontade era pedir a eles que se dirigissem à igreja e que deixassem em paz os filósofos. Ele não mudaria seu pensamento, como que se fosse possível encomendá-lo a um marceneiro. Sabia que qualquer verdade passa sempre por três estágios: primeiro, é ridicularizada; segundo, é violentamente combatida; terceiro, é aceita como óbvia e evidente.
Naquela “data querida”, restava apenas, uma vez compreendida toda a tragicidade da vida, conservar a sociabilidade e conviver com o tempo e com o lobo e o “tudo era uma vez”. Era a única forma de suportar a solidão e, nela, a si mesmo...
Sua vocação mandara-o, o meninozinho, com um livro na mão, aos alunos que amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia. O-menino-com-um-livro-na-mão partiu, sobre logo, ele, solitário e macambúzio, tudo era uma vez... O livro continha infindáveis teorias filosóficas que ele mesmo apenas fazia ensinar. Contudo, há alguns dias, certo pensador aliciou a sua atenção, assoalhando-lhe que a existência é extremamente vazia e que toda produção cultural e tudo mais que os homens produzem tão somente tem por objetivo a negação da falta de sentido da vida. Esse menino, então, já com “Síndrome de Peter Pan”, sentiu-se deveras angustiado, agora mais do que nunca. E ele mesmo resolveu tornar aquele caminho, de uma aldeia à outra, louco e longo, não encurtoso. Saiu, não em alta velocidade, e sua sombra o acompanhava sobejamente. Divertia-se com as plebeinhas flores, aquelas que nunca estão em buquês. Deliciava-se com as borboletas, princesinhas incomuns, obsoletas aos outros motoristas. Assim, demorou para dar com a Escola.
Daí que, vencido mais uma vez aquele íntimo caminho, naquele dia um tanto diferente, chegando à Escola, viu só os professores, mas, aluno, nenhum. Haviam faltado naquele dia. No entanto, de súbito, dissipou-se a alegria do caminho e a angústia lhe tomou novamente a fronte. Agora, grávido de angústia, ele mesmo era quem se dizia: “ – A felicidade não passa de um sonho, e a dor é real... Há vinte e nove anos que o sinto. Quanto a isso, não posso fazer outra coisa senão me resignar, e dizer que as moscas nasceram para serem comidas pelas aranhas e os homens para serem devorados pelo pesar. Parecemo-nos com carneiros a brincar na relva, enquanto o açougueiro, com os olhos, está a escolher alguns entre eles, pois, nestes bons tempos, não sabemos que infelicidade precisamente agora o destino está nos preparando: doença, perseguição, empobrecimento, mutilação, cegueira, loucura, morte... Vista pelos jovens, a vida é um futuro infinitamente longo; vista pelos velhos, um passado muito breve... Andei este bom tanto, com o livro na mão, o tanto que as dívidas me obrigaram, oscilando entre aquela criança que não quer crescer e um ancião que carrega o peso dos anos, andando de cá para lá, com seus passos vacilantes, repousando num canto e outro. Uma sombra. Um fantasma do que era antes... Que me resta ainda para ser destruído pela morte?” Seria aquele o dia de seu aniversário se, ironicamente, não houvesse tomado a decisão de não mais cumprir anos. Bastavam-lhe aqueles outros vinte e nove.
Na sala dos professores, saudou a todos, enquanto ainda era tempo. Seus companheiros de jornada pediram-lhe que depusesse sobre a mesa a mochila que trazia como fardo em suas costas. Como sempre, trazia também o livro na mão. Mas isto não mais importava, posto que algumas daquelas teorias já haviam feito ninho em seu coração. O menino, destruído pelo tempo que insistia em querer roubar o poder e a beleza da sua juventude, assim o fez, e sentou e olhou para todos, com imensa fome de afirmação de si mesmo. As pessoas sussurravam entre si sobre como o seu rosto há muito não sorria e como os seus olhos ultimamente haviam perdido parte de seu brilho questionador. Mas estavam enganadas: na verdade, eram incapazes de compreender que a existência da maior parte dos homens é, vista exteriormente, por olhos que não os próprios olhos, insignificante e destituída de sentido, e como é surda e obscura, quando analisada por razão alheia, quando sentida interiormente por outrem. Consta apenas de tormentos, aspirações impossíveis; é o andar cambaleante de um homem que sonha através das quatro épocas da vida, até à morte, com um cortejo de pensamentos triviais.
Como seus companheiros não sabiam da sua decisão de não mais cumprir anos, decisão esta tomada em seu último aniversário, se aproximavam, quebrantados pelo silêncio do menino, com vozes apagadas e fracas e roucas, assim, de ter apanhado um ruim defluxo. Deram-lhe os parabéns que, aos seus ouvidos, soavam como pêsames. O menino-professor, pasmo, notava em seus rostos uma ironia, lupina por natureza, que celebrava o fato de que todos envelhecem em morrem, inclusive ele. Naquele momento, ele mesmo não queria ter dezesseis anos. Ele não queria ter doze anos. Ele não queria ter seis anos. Na verdade, ele não queria ter nascido!!!
Sua razão se obscureceu quando considerou que as inúmeras estrelas fixas, que brilham no céu, não têm outro fim senão o de iluminar mundos onde reinam o pranto, a dor, e onde, no melhor dos casos, só vinga o aborrecimento, pelo menos a julgar pela amostra que conhecemos. Ele estava naquela sala, demasiado presente, quando imaginou seu corpo sendo devorado drasticamente por lobos... O exame do seu cadáver mostraria que a sensibilidade, a irritabilidade, a circulação do sangue, a reprodução cessaram. Se tocassem em seu cadáver agora, perguntando se desejava ressuscitar, ele sacudiria a cabeça em um movimento de recusa.
Assustado sobre como tão longe tinha o seu pensamento voado, ele gritou: “ – Tenho medo do lobo!!!” Os muitos que apostavam em sua insanidade, a concluíram. Ele piamente acreditava, no entanto, que a normalidade é coisa destarte imbecil e estéril, nada produzindo de interessante ou bom. Não obstante, era preciso ser gentil e agradecer as congratulações sobre aquilo que não deveria ser comemorado, mesmo sem poder dizê-lo. Não queria dizer que a sua filosofia era desesperada somente porque se expressava conforme a verdade. Todos aqueles que estavam naquela sala acreditavam, entre tantos credos que professavam, que o Senhor Deus fez tudo do melhor modo. Mas, a sua vontade era pedir a eles que se dirigissem à igreja e que deixassem em paz os filósofos. Ele não mudaria seu pensamento, como que se fosse possível encomendá-lo a um marceneiro. Sabia que qualquer verdade passa sempre por três estágios: primeiro, é ridicularizada; segundo, é violentamente combatida; terceiro, é aceita como óbvia e evidente.
Naquela “data querida”, restava apenas, uma vez compreendida toda a tragicidade da vida, conservar a sociabilidade e conviver com o tempo e com o lobo e o “tudo era uma vez”. Era a única forma de suportar a solidão e, nela, a si mesmo...
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[*] Estruturado com base em “Fita Verde no Cabelo”, conto de Guimarães Rosa, bem como, na filosofia pessimista de Arthur Schopenhauer.